A coleção de fotografias National Geographic: apontamentos e direções para mais uma (re)visão da trajetória de Harald Schultz e Vilma Chiara junto a antropologia.

Harald Schultz e Vilma Chiara tem despontado nos últimos anos como nomes de crescente interesse por parte de pesquisadores da área da Historiografia da Antropologia, sobretudo quando buscamos na disciplina os precursores do uso de imagens no contexto de pesquisa etnográfica entre povos indígenas no Brasil.

A trajetória do casal tem sido marcada mais recentemente no contexto brasileiro pelo pioneirismo, que veio a ser denominado posteriormente na disciplina como o campo da “Antropologia Visual”, sobretudo a partir da segunda metade do século XX. Contudo, o destaque do trabalho de Schultz e Chiara ultrapassa o campo das imagens etnográficas, sendo ambos reconhecidos também por suas publicações e artigos a respeito de povos indígenas e, sobretudo no contexto museológico, enquanto importantes coletores de objetos etnológicos, tendo formado um dos mais importantes acervos referente a povos indígenas atualmente no Brasil: a “Coleção Harald Schultz” do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo. 

Entretanto, o reconhecimento mais recente do trabalho do casal no campo da Antropologia Visual tem se dado não apenas pelo fato de terem fotografado mais de trinta povos indígenas, produzindo uma das coleções mais pujantes de imagens etnográficas da segunda metade do século XX, com seus mais de vinte mil negativos e slides fotográficos, a chamada ‘Coleção de fotografias particular Harald Schultz e Vilma Chiara’. Ou ainda, devido aos mais de sessenta filmes etnológicos produzidos para o projeto da Enciclopédia Cinematográfica do Instituto do Filme Científico (IWF) de Göttingen, Alemanha. Assim como outras coleções fotográficas de mesma autoria, mas de volume menor, que podem ser encontradas em instituições como o MAE-USP, MAE-UFPR, Museu do Índio – RJ, Laboratório de Imagem e Som em Antropologia – USP, e agora, mais recente, a ‘Coleção National Geographic’ que poderá ser consultada através deste site vinculado ao MAE-USP.

O destaque do casal no campo da Antropologia Visual, por outro lado, se apresenta especialmente através da consolidação de uma perspectiva que coloca em foco a imagem enquanto uma forma legítima de produção de conhecimento antropológico, uma vez que, segundo Chiara pontuou em uma de nossas conversas antes de seu falecimento em 2020, “fotografar também era fazer pesquisa”, ao contrário do que pareciam julgar alguns de seus colegas e professores antropólogos da época. 

Diante desta afirmação, entendemos que a imagem etnográfica poderia ser mais que um registro ou material epistolar de pesquisa em campo, mas sim uma forma, ou metodologia, de desenvolvimento de pesquisa na antropologia. Percepção esta que gradativamente progride na segunda metade do século XX na disciplina, posto que teóricos precursores do campo da Antropologia Visual em outros países, como Margaret Mead e Gregory Bateson nos EUA, já sinalizavam esta transição na forma tanto de realização quanto de uso das imagens etnográficas na construção da análise antropológica.

Vista enquanto uma metodologia de pesquisa, a fotografia e o filme para o casal de etnólogos correspondiam a ferramentas potentes com relação a documentação da cultura dos povos pesquisados. Tal aspecto, que contribuía para a consolidação do uso da imagem no contexto de pesquisa antropológica, confluía com um momento histórico em que a própria antropologia vivia sua institucionalização nas universidades enquanto uma disciplina autônoma, rigorosa e atenta a suas práticas e procedimentos, ao passo que gradativamente se distanciava de sua origem mais atrelada ao contexto dos museus etnológicos. Desta forma, tanto a fotografia quanto o filme etnográfico, seguiam técnicas específicas para o seu desenvolvimento científico entre povos indígenas no Brasil, conforme podemos acompanhar através dos depoimentos de Vilma Chiara (Vicentin, 2021).

Contudo, esta transição de perspectiva sobre o uso da imagem nas pesquisas etnográficas esbarrava também com uma das práticas mais comuns, difundidas e consagradas dos primórdios da disciplina, o emprego do texto e da coleta de material etnológico enquanto informações relevantes referentes ao trabalho de campo dos antropólogos. Apesar da imagem nunca ter sido, por outro lado, esquecida por parte dos viajantes, naturalistas nem mesmo os primeiros pesquisadores na antropologia, seu uso se restringiu num primeiro momento na história da disciplina enquanto ilustração para os textos etnológicos ou ainda, uma documentação vista como fidedigna, real e testemunhal da existência daqueles povos distantes da “civilização”. Assim, o caráter mais artístico, estético, sensível, imaginativo e fabulativo da imagem, era muitas vezes relegado em nome de um olhar científico, rigoroso e preciso da cultura indígena através da sua combinação com o texto etnográfico.

A chamada “antropologia salvacionista” ou de “urgência”, sem dúvidas, norteou o trabalho de muitos antropólogos da época, tanto brasileiros quanto estrangeiros, que enxergavam na coleta de materiais etnológicos e no exaustivo registro da cultura desses povos, uma forma de atestar ou mesmo denunciar o desaparecimento cada vez mais veloz e brutal forjado através da entrada dos Estados-Nações nestes territórios, ou ainda a partir dos primeiros contatos do homem branco com povos indígenas anteriormente isolados. 

Schultz e Chiara, por sua vez, também foram contagiados por essa prática de urgência, em que a imagem, talvez, tenha se mostrado tão efetiva quanto as outras formas de documentação com relação a esses povos. Uma vez que esta prática se alinhava a perspectiva teórica difundida sobretudo pelos professores e colegas antropólogos do casal, como Herbert Baldus e Egon Schaden, era inevitável que a “aculturação” desses povos frente ao recente contato com os brancos acontecesse, por isso era valioso um estudo que considerasse os resquícios e transformações daquela cultura ainda presente entre seus remanescentes. Assim, para além das correntes teóricas vigentes na disciplina, a motivação – ou preocupação – era direcionada às constantes viagens de campo e a exaustiva produção de documentação com relação a esses povos, sobretudo de recente contato. Conforme como bem salientou Sahlins (1997, p.10), sob uma concepção mais generalizada na antropologia da “arqueologia do vivente”.

A etnografia profissional, desde sua origem — quer se a localize nas entrevistas de Lewis Henry Morgan com os Iroqueses ou nos veraneios de Boas e seus alunos em reservas indígenas —, tem sido uma “arqueologia do vivente” (na fórmula de Lévi-Strauss), um esforço de salvamento, obcecado não somente pelo declínio da cultura indígena, mas pela perda até mesmo de suas memórias.

SAHLINS, 1997, p. 10

Esta proposição fica ainda mais nítida quando a relacionamos à descrição que acompanha uma das fotografias da ‘Coleção National Geographic’ a respeito de um homem Suyá com seus discos labiais. Nesta descrição é possível contornar com mais precisão a perspectiva de salvamento ou urgência da antropologia com relação a esses povos, esta que efetivamente norteou não apenas o trabalho de Schultz e Chiara e outros antropólogos da época, mas parece ter transbordado para além das fronteiras da própria disciplina de forma mais ampliada.

Etiqueta “Photo by Harald Schultz // National Geographic Society // VANISHING PEOPLES OF THE EARTH // Wooden disks distend the lower lip and earlobes of a painted Suya man. Once one of the most feared tribes in Brazil’s upper Xingu region, the Suya now are reduced to a scant 65 member living in the Xingu National Park. The tribe is one of a number that face extinction, reports the National Geographic Society’s new book, Vanishing Peoples of the Earth. The 208 page book, illustrated with 187 striking photographs, reveals how 20th-century influences alter traditions among once-isolated human societies on six continents.”

Portanto, a ênfase que pode ser dada sobre o uso da imagem por parte desse casal de etnólogos é primeiramente alocada no caráter documental e de testemunho sobre aquelas culturas vistas como em vias de desaparecimento. Em segundo lugar, tal ênfase se relaciona ao uso da imagem, ainda que de forma documental, enquanto um recurso relacional, complementar, senão central, com relação à coleção de objetos e textos etnográficos.

Neste sentido, pode-se notar que estas imagens registravam não apenas a manufatura dos objetos que foram coletados e pesquisados pelos etnólogos, mas também o contexto de uso dos mesmos, algo que anteriormente só poderia ser forjado através de uma descrição minuciosa sobre estes materiais ou mesmo através de algum desenho desenvolvido pelos próprios pesquisadores a respeito do processo de manufatura e uso que os envolvia. Além disso, festas, rituais, plantio, caça, coleta, bem como outras práticas cotidianas como brincadeiras infantis, compõem as atividades que através do uso da imagem enquanto registro eram aproveitadas considerando sua natureza mais espacial, sensível e estética, para além de ser um recurso importante que também continha informação etnográfica. 

Desta forma, a pequena coleção de fotografias endereçada pelo casal de etnólogos à revista National Geopraphic é, portanto, uma amostra da qualidade e da relevância do material fotográfico realizado pelo casal – uma vez que nos apresenta registros também de povos de recente contato e que de fato, desapareceram na literatura etnológica, ou foram (con)fundidos com outros povos, como é o caso do povo indígena Urukú.

 Nesta coleção, podem ser encontradas fotografias referentes a cerca de seis povos indígenas, Waurá, Suyá, Krahô, Kaxinawá, Erigpatsá, Maku, Javahé e Urukú, o que não é nem a metade dos povos indígenas que foram fotografados pelo casal, nem mesmo tão volumosa quando comparada à coleção particular do casal ainda sob a guarda da família. Por outro lado, sabemos que a relevância de tais fotografias presentes nesta coleção pode ser emplacada segundo a informação e a descrição realizada pelo casal para tal revista, uma vez que observamos que a maior parte dos registros fotográficos realizados por Schultz e Chiara não foram utilizados em tantas publicações ou artigos científicos. A maior parte da coleção de fotografias particular, por exemplo, é desamparada de uma descrição intensiva dos eventos representados, isto é, da informação etnográfica relacionada às imagens, o que nos converte a apreciar e valorizar as imagens da ‘Coleção National Geographic’ por um outro ângulo.

As informações etnográficas utilizadas de forma composicional às fotografias e vice-versa contribuem para a construção de um imaginário específico da época no que diz respeito ao modo de vida de cada um desses povos, e por sua vez, o que era recortado ou selecionado para ser além de texto, também convertido em informação fílmica e fotográfica. Informação esta marcada através de uma lente de pesquisadores muito singulares, que vinham percorrendo os mais variados povos indígenas nas localizações mais distantes do país, bem como sendo desafiados pelas políticas de financiamento para a pesquisa de campo em um momento em que a disciplina vivia sua transição institucional dos museus para as universidades. 

Vale aqui reiterar que tais imagens da ‘Coleção National Geographic’ foram escolhidas entre um volume muito grande de registros realizados pelos etnólogos e endereçadas para um meio de divulgação nem tão especializado quanto o antropológico, como é o caso do público mais amplo leitor desta revista, o que nos direciona, portanto, a pensar e analisar essas imagens a partir de questões muito específicas. 

Isto posto, as imagens da ‘Coleção National Geographic’, de forma mais elaborada, talvez não façam tanto sentido somente em suas proposições estéticas ou sensíveis. Justamente, a riqueza deste material é atrelada às suas composições que incluem desde as conexões possíveis com o material tridimensional, quando existente, até a informação mais detalhada e desenvolvida pelos etnólogos sobre o povo em questão através do texto publicado na revista.

Para tanto, uma análise mais aprofundada dessas imagens, sem dúvidas, pode seguir em algumas direções: desde o contexto de produção das mesmas, que inclui uma pesquisa mais apurada sobre o encontro dos etnólogos com cada um desses povos, os financiamentos envolvidos em cada uma dessas expedições; Por outro lado, podem ser investigadas as conexões dessas imagens com os outros materiais, como por exemplo, os objetos tridimensionais coletados pelos etnólogos, ou ainda a relação dessas imagens com as fotografias e filmes referentes a outras coleções, como as do Instituto do Filme Científico de Göttingen (IWF); Além disso pode ser investigada a relação entre as imagens e o texto escrito para a revista National Geographic, onde se questiona desde o recorte dessas imagens, suas escolhas composicionais e ilustrativas com relação ao texto; E por fim, a relação deste material textual e imagético que compõe esta coleção em comparação a outras fotografias que também foram publicadas junto a um texto descritivo, como é o caso dos livros “Hombu” e “Isto é Amazônia”.

Desta forma, talvez, poderíamos partir para nos aprofundar sobre a escolha dessas imagens para tal publicação diante de uma miríade muito maior e extensa de possibilidades de imagens com relação aos mesmos eventos. Assim, a pergunta que se sustenta, portanto, é por que especificamente essas imagens? Quais seriam as peculiaridades encontradas nas mesmas para que fossem escolhidas pelos etnólogos? O que foi mobilizado de informação etnográfica através dessas imagens?

Ao analisarmos os poucos dados existentes referentes às imagens da ‘Coleção National Geographic’ constatamos duas informações que podem revelar alguma pista nesse sentido. A primeira delas é que a maior parte das fotografias foi “Sent from Paris”, ou seja, isso indica que a escolha da maior parte delas foi realizada por Chiara durante seu período de estudo e trabalho na França, posteriormente ao falecimento de Schultz em 1966. Um segundo dado relevante é que parece que nem todas as imagens foram utilizadas pela revista com o mesmo fim, isto é, enquanto reportagens mais detalhadas a respeito da cultura desses povos. Como no caso do trecho citado sobre o livro publicado pela National Geographic “Vanishing Peoples of the Earth”, as fotografias utilizadas pela revista também tinham propósitos mais generalizados e agregadores a respeito de povos indígenas de diferentes localidades. Tais pistas nos direcionam, portanto, a perceber que só a partir dessa pequena coleção, ainda há muito que ser investigado e escrito.

A partir da minha experiência enquanto pesquisadora do trabalho fotográfico e fílmico de Schultz e Chiara, posso apontar para um encontro simultâneo entre a dimensão estética e científica dessas imagens. Vejo algumas imagens impressionantemente permeadas de sensibilidade, contraste e movimento. Por outro lado, vejo algumas imagens com o foco mais ilustrativo e informativo sobre a ‘identidade’ daquele corpo-povo indígena. Mas em nenhuma delas está ausente esse caráter duplo, pelo contrário. O mesmo se concentra ou dilui conforme seguimos a leitura da reportagem, nos indicando como tais concepções ou formas da imagem são tão mais complexas e carregadas de escolhas não mapeáveis, sensoriais e familiares do que pode perceber o nosso mais atento olhar sobre elas.

Assim, a profundidade dessas imagens reside não apenas em sua iconografia, mas sim no entrelaçamento de todas as informações e fabulações a seu respeito que nos atravessam, e também atravessaram o casal de etnólogos outrora, uma vez que a pesquisa etnográfica é por si mesma, uma forma de descrição e imaginação não menos posicionada, sensível e sistemática, ao mesmo tempo, do encontro do etnólogo com o outro, bem como com os materiais que compõem a sua pesquisa. 

Por fim, para as pessoas interessadas no campo da historiografia da disciplina e na imagem etnográfica, a coleção de fotografias endereçada pelo casal de etnólogos para a revista National Geographic é uma amostra do que ainda está por ser considerado sobre o contato do que pode ter sido a primeira geração de antropólogos no Brasil a realizar pesquisa entre povos indígenas, fazendo um uso sistemático da coleta de objetos para museus etnográficos e, ao mesmo tempo, da fotografia e do filme enquanto formas potentes de documentação a respeito desses povos. 

Como pontuado, tais fotografias nos contam também sobre os desafios e as práticas utilizadas em campo para que a informação etnográfica fosse registrada e difundida posteriormente através de publicações em revistas, livros e artigos científicos. Isto é, tal avaliação nos inspira a (re)ver também nossos procedimentos com relação a tais histórias e formas de se fazer pesquisa a partir delas, nos indicando que ambos os movimentos são importantes para uma percepção mais detalhada, ética e ao mesmo tempo criativa com relação a este material.

Já não nos basta enxergar tais imagens como produto apenas de um primeiro encontro entre o casal de antropólogos e povos indígenas, senão um material em processo tanto de (re)conhecimento por parte das pessoas interessadas nessas histórias, bem como os próprios detentores também dessas imagens, os povos indígenas. Uma vez que sabemos que tais registros apontam para uma direção que vai além da história da própria antropologia, mas sim sobre a história desses povos indígenas em contato com o mundo branco, é compreensível que num futuro próximo tais imagens encontrem outros caminhos de uso e reflexão. Estes, inclusive, que ultrapassem as dicotomias intrínsecas presentes hoje nas mesmas como o entrelaçamento de proposições chave da disciplina como a objetividade e a subjetividade da imagem e do fazer antropológico, mas também a ética e a política com relação a este material, estas que devem tanto preencher quanto suspender as lacunas de informação que estão por vir com relação a esta coleção. 

Neste sentido, ainda há muito que ser (re)visto sobre as fotografias da ‘Coleção da National Geographic’ e esta primeira abertura para o uso e pesquisa das mesmas por parte das pessoas interessadas ou mesmo de seus detentores é, sem dúvidas, uma conquista importante, sobretudo em um momento em que o trabalho fotográfico do casal de etnólogos gradualmente vem sendo (re)conhecido dentro da própria disciplina em que eles são também precursores.

 1 Nomenclaturas utilizadas pelos antropólogos segundo suas outras publicações.


Bibliografia:

VICENTIN, M. J. F. Como fazer um filme etnográfico para a Enciclopédia Cinematográfica? As colaborações entre Vilma Chiara e Harald Schultz. Culturas indígenas no Brasil e a coleção Harald Schultz. p. 1 – 328, 2021.

VICENTIN, M. J. F. Uma outra história da Antropologia Visual no Brasil: As trajetórias de Vilma Chiara e Harald Schultz. In: 32ª Reunião Brasileira de Antropologia, 2020, Online. GT 51- Historiografia das antropologias: práticas, teorias, métodos, histórias. 2020.

SAHLINS, M. O “pessimismo sentimental” e a experiência etnográfica: porque a cultura não é um “objeto” em via de extinção. In: Mana – Estudos de Antropologia Social do Museu Nacional. Rio de Janeiro, v. 3, n. 1 e 2, UFRJ, 1997.

Artigos relacionados
O fotógrafo Harald Schultz

Integrando meticulosidade e paixão pela fotografia, Harald Schultz, renomado fotógrafo e etnógrafo brasileiro, dedicou sua vida a documentar e preservar as culturas indígenas, deixando um legado de mais de 7 mil artefatos e registros visuais que continuam a contar a rica narrativa da diversidade cultural no Brasil.