Harald Schultz (1909-1966) nasce em Porto Alegre, filho de pai alemão e mãe com descendência dinamarquesa. Seus estudos são feitos na Alemanha, mas já no Brasil tem interesse por fotografia. Graças à influência de seu pai, tem uma chance de trabalhar como fotógrafo jornalístico para o então Presidente Getúlio Vargas. Schultz estabeleceu importantes conexões e em 1939, no Rio de Janeiro se aproximou do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) e da política indigenista. Em 1942, passa a trabalhar neste órgão estatal e realiza suas primeiras expedições etnográficas (BATISTELLA, 2017, p. 38-41). Neste período, sua biografia se cruza com a de Curt Nimuendaju (1883-1945), pois suas técnicas de pesquisas de campo são inspiradas pelo trabalho deste etnógrafo.
Em 1945, é convidado por Herbert Baldus (1899-1970), a ser seu assistente de pesquisa, assim como também a frequentar aulas na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP). Neste ambiente, conhece Vilma Chiara (1927 -2020) que será sua companheira na vida e em muitas expedições antropológicas. Vilma Chiara também inicia um estágio no Museu Paulista (MP/USP) neste período e a partir do casamento com Harald Schultz em 1950, a antropóloga também passa a acompanhar Schultz em viagens de campo pelo Brasil.
Intercalando suas aulas com atividades de campo, Schultz construía uma importante coleção para o acervo de etnologia do Museu Paulista (MP/USP). Sua produção fotográfica e fílmica de alto nível enriquecia sobremaneira os objetos coletados, uma vez que buscava documentar processos de manufatura, festas, rituais e práticas cotidianas dos povos indígenas.
A coleção Harald Schultz teve sua origem na antiga Sessão de Etnologia do MP/USP, estabelecida por Herbert Baldus em 1946. Seu principal propósito consistia em organizar e expandir de maneira sistemática um acervo representativo dos povos indígenas, com especial ênfase na divulgação da diversidade cultural presente no Brasil por meio de sua cultura material. O enfoque primordial da pesquisa era ressaltar a vasta diversidade cultural das comunidades indígenas e como ela desempenhou um papel significativo na formação das raízes culturais brasileiras.
A coleção formada por Schultz possui mais de 7 mil artefatos, 62 filmes mudos produzidos para o projeto da Enciclopédia Cinematográfica do Instituto do Filme Científico de Göttingen na Alemanha (IWF) e 1.127 diapositivos coletados entre os anos de 1942 a 1965. Estes objetos estão salvaguardados no Museu de Arqueologia e Etnologia da USP (MAE/USP) desde 1989, por meio da Resolução 3560/89, de iniciativa do reitor José Goldemberg, que resultou na fusão das coleções de arqueologia e etnologia das instituições – antigo MAE, Museu Paulista, Instituto de Pré-História Paulo Duarte e Acervo Plínio Ayrosa e na criação deste novo museu.
O acesso aos registros materiais e fotográficos da coleção organizada por Harald Schultz é essencial para compreender as trajetórias dos povos indígenas. Esses objetos eram meticulosamente coletados, e toda a documentação fílmica e fotográfica associada ressaltava a importância de situar os objetos em seus contextos de produção e uso cultural. Esses registros atestam a diversidade com as quais as sociedades indígenas retratadas interagiam com o mundo ao seu redor.
É importante destacar que este processo se deu dentro da perspectiva da coleta de cultura material e da documentação do modo de vida de comunidades indígenas pois pensava-se que estes grupos estariam fadados ao desaparecimento. Esta visão se originou ainda no século XIX e permeou os trabalhos de etnógrafos como Schultz no século XX. Por isso, Schultz se dedicava a coletar, fotografar, filmar, descrever estes povos em um esforço pelo resgate destas culturas. Hoje, sabemos que esse processo de desaparecimento não aconteceu, e os povos indígenas não apenas resistiram, mas também se transformaram e continuamente buscam o fortalecimento de sua identidade cultural.
O encontro da cultura material e da imagem permeou o trabalho de Harald Schultz. Um trabalho publicado em 2020 talvez possa ser a última entrevista com Vilma Chiara. Neste texto, Chiara comenta que “a paixão de Schultz era a fotografia, ele vivia com a câmera grudada no corpo, quase como um terceiro olho” (VICENTIN, 2020, p.7).
VICENTIN também registra as impressões da antropóloga sobre o impacto do modo de trabalho de Schultz nos tempos do Museu Paulista:
Às vezes o Baldus era muito sacana, porque ele dizia para mim: “fala pro Haroldo largar a máquina fotográfica, porque isso só atrapalha”. Eu, quieta. Porque eu sabia que o Baldus tinha ciúmes. Era através das fotografias do Haroldo que ele tinha publicações no National Geographic. Ele tinha muita abertura, por causa das fotografias. E o Baldus tinha ciúmes, pode? […] Disse assim para o Haroldo: “enquanto você anda com essa máquina no pescoço você está prejudicando suas pesquisas”. Você vê que é um tempo que você nem imagina que existe… Fotografar não era antropologia. Fotografar atrapalhava a pesquisa.
CHIARA, Vilma. Entrevista concedida em 12 de maio. 2018, Curitiba-PR apud VICENTIN, 2021, p. 181.
Estes registros fílmicos e fotográficos seguiam um método de documentação científica. Vilma Chiara também relatou que a coleta dos objetos estava relacionada aos temas de filmagem da produção da Enciclopédia Cinematográfica (VICENTIN, 2021, p. 179). Segundo Chiara:
O Haroldo fotografava de tal maneira que reproduzia uma cena depois da outra. Você tem o objeto sendo feito, que é muito importante. Começando pelo índio andando na estrada e catando folha pra fazer cesto. Primeiro catar folha, depois botar folha assim, depois trançar assim, etc. […] A gente discutia muito, organizava antes os objetos que eram traduzíveis em documentação cinematográfica. Tinham que ser ideias concretas, como a gente iria filmar um pensamento? Então você precisava filmar a confecção disso, daquilo, etc. Eles [IWF] queriam sem áudio. E o áudio perturba mesmo. Pra que áudio? O áudio perturba. As informações que eram relevantes sobre o artesanato, eu anotava. Eu acrescentava no texto, as informações obtidas durante a filmagem, durante essa operação. O Haroldo estava mais preocupado na informação visual e eu na informação etnográfica. Porque era eu que perguntava, que ia, que era xereta.
Vilma CHIARA, Entrevista concedida em 12 de maio. 2018, Curitiba-PR apud VICENTIN, 2021, p. 181.


Figs. 1 e 2 – Homem Makú tecendo uma pequena cesta na floresta (IE000735) e cesto coletado por Schultz em 1958 (RG 9774) – Coleção MAE/USP.
Quando olhamos para a coleção Harald Schultz percebemos que o elo entre a presença da cultura material e o registro das imagens são processos complementares da pesquisa realizada. Este “fazer etnográfico” alimenta uma rica narrativa da comunicação da materialidade do objeto entrelaçada às imagens dos grupos registrados durante as expedições científicas. Imagens que, por meio da cultura material preservada, potencializam o seu poder de comunicação.
A iniciativa de caracterizar, retratar e preservar a diversidade das culturas ameríndias reflete a influência de dois mentores cruciais na trajetória histórica de Schultz: Herbert Baldus e Curt Nimuendajú, que introduziram as tendências teórico-metodológicas europeias adotadas no Brasil.
É relevante destacar que o método inovador de Schultz, consistindo em fotografar e filmar momentos significativos do cotidiano de cada grupo estudado, acabou se tornando um testemunho fundamental para o desenvolvimento da Antropologia Visual Brasileira, uma área que ainda não existia em sua época.
Para se compreender este legado é importante destacar novamente o contexto político nacional da produção de Harald Schultz. Seu trabalho como fotógrafo do SPI servia aos propósitos da política de Getúlio Vargas, durante o Estado Novo. A meta era registrar a maior quantidade possível da cultura nativa e com celeridade, uma vez que se pensava que os povos indígenas sofreriam aculturação. A agenda política governamental também oferecia direção a estas pesquisas, uma vez que, ao mesmo tempo em que se documentavam imagens e se recolhiam objetos, a figura do indígena ganhava destaque como brasileiro nato. O governo Vargas buscou uma política solidária entre o Estado e seus agentes e os etnólogos cumpriram função primordial neste cenário, pois destacava-se o quão os povos indígenas estavam “pacificados” e aptos a integrar o projeto de nação propagado pelo Estado Novo, somando-se à massa de trabalhadores brasileiros (BATISTELLA, 2017, p.93-94).

Fig. 3 – Homem Juruna retratado por Harald Schultz em 1960 (ie000680). Coleção MAE/USP.
Curiosamente, para a formação da coleção etnográfica no Museu Paulista, Schultz não tinha apoio de verbas específicas para a viagem ou para adquirir materiais que seriam utilizados em trocas com os indígenas. Segundo Vilma Chiara, o apoio veio da Aeronáutica, da Delegacia Policial de São Paulo e de comerciantes da colônia sírio-libanesa de São Paulo, que forneciam a Schultz um estoque de materiais como facas, canivetes, panelas e miçangas para abastecer as trocas feitas durantes as expedições (BATISTELLA, 2017, p.85).
Vilma Chiara assumiu um importante protagonismo na produção destas imagens registradas pelas lentes de Schultz. VICENTIN documenta que a antropóloga era responsável pela elaboração do jogo de luzes que vemos em cena em muitas fotos registradas por Schultz. Os refletores muitas vezes trazem uma carga dramática às imagens e Vilma era responsável por direcioná-los, como uma “diretora de cena”. Além disso, a antropóloga recorda que muitas vezes, os indígenas perdiam a espontaneidade durante as filmagens e fotografias e ela começava a conversar com eles sobre outros assuntos, para que o foco fosse desviado e então eles pudessem ficar mais relaxados durante os registros das imagens (2021, p. 184).
Os registros de Schultz evidenciam sua habilidade e sensibilidade ao capturar aspectos da vida cotidiana das comunidades que ele estudava. Ele destacou os traços culturais distintos e comparativos de diferentes etnias, examinando práticas similares entre grupos diversos, como técnicas de caça e pesca, bem como a manufatura de objetos feitos de fibras vegetais e cerâmicas.
É crucial ressaltar que os registros de Harald Schultz não se limitam a ser simples representações de partes específicas da realidade que ele vivenciou. Sua intenção não era apenas ilustrar ou descrever momentos isolados, mas sim abranger a totalidade dessa realidade.
As imagens registradas por Schultz representam uma valiosa contribuição científica para as pesquisas de várias gerações de antropólogos focados no estudo das populações indígenas brasileiras. A riqueza dessa coleção reside na capacidade de combinar aspectos visuais e materiais dos objetos, uma vez que muitos dos artefatos documentados nas imagens, incluindo detalhes sobre sua fabricação e contexto de uso, ainda estão preservados no acervo do museu.
Os registros fotográficos e materiais reunidos por Schultz têm como objetivo promover as culturas indígenas e sua diversidade. As imagens capturadas por Schultz eram utilizadas em aulas, palestras, conferências e exposições, tanto no Brasil quanto em publicações no exterior, com o propósito de estimular debates sobre a realidade dos povos indígenas no Brasil e conscientizar as pessoas sobre a importância da preservação dessas culturas. Além disso, suas fotografias foram amplamente publicadas em seus próprios livros e em diversos artigos etnográficos, com destaque para a Revista do Museu Paulista e a National Geographic como principais veículos de divulgação (CAMPOS, 2021, p. 39).
A análise dos objetos da coleção possibilita a identificação de grupos distintos e a observação de suas trajetórias culturais, abrangendo tanto os aspectos tradicionais quanto as mudanças e reorganizações sociais ao longo do tempo nas comunidades indígenas.
O estudo integrado de imagens e objetos possui uma potencial força que transcende o tempo. Essas imagens e objetos continuam a cumprir esse propósito, tornando-se fontes valiosas para a preservação da memória cultural de grupos que estão em processo de resistência. O processo de coleta dos objetos e a produção das imagens feitas por Harald Schultz demanda construção de relações de confiança com os grupos indígenas registrados. Schultz assumia com destreza o encontro com o outro e a compreensão das diferenças culturais entre os indivíduos registrados por sua câmera.
Há narrativas indígenas que ainda guardam na memória dos mais antigos a presença amigável e quase familiar de Schultz nas aldeias.
A visita do alemão aos caxinauás foi assim. Os caxinauás viram um alemão alto de cabelo ruivo. Chamaram-no de Yaix Buxka, “cabeça de tatu”. Os caxinauás deram-lhe um nome, um apelido. Ele parecia com um parente caxinauá falecido cujo apelido era Yaix Buxka. Ele tinha uma câmera (…) Também tirou fotos de como pescavam, de como faziam seus artesanatos e de como as mulheres cozinhavam. (…) Viveu um tempo com eles. Parece que vivia assim, trabalhando muito bem com aquela família caxinauá dele.
CAMARGO, Eliane & VILLAR, Diego, 2013, p. 185.
Por esta convivência harmoniosa, Schultz e Vilma Chiara garantiam lugar privilegiado junto às comunidades indígenas e conseguia ter acesso ao invisível, registrando com sensibilidade o “outro” através da sua produção visual e da coleta da produção material destes grupos. Schultz, assim como todos aqueles que trabalhavam com pesquisas antropológicas naquele período, estavam imbuídos do ideal do resgate cultural. A coleção formada por suas atividades de campo, mais do que uma seleção de objetos feitas pelo etnógrafo, complementam a sua produção visual. Esta coleção vista em conjunto idealmente deseja comunicar quem eram estes povos indígenas, como viviam e estavam sendo eternizados pela ação de suas lentes.
O envolvimento passional de Schultz é registrado por meio de cada imagem e é por meio dessas histórias que hoje podemos testemunhar a relação construída entre o etnógrafo e todos os personagens envolvidos nestes registros. Cada objeto coletado por Schultz também deve ter sido foco de negociações entre ele e os detentores destes materiais.
É mais do que justo hoje pensar em uma devolutiva para estes grupos. A preservação destes objetos e a democratização do acesso destas imagens é um compromisso que devemos manter com os povos indígenas. Este conjunto de materiais que hoje se denomina “coleção Schultz” é antes de mais nada o patrimônio material e registros de memória dos grupos retratados por Schultz.
Nos últimos anos, vários grupos indígenas brasileiros começaram a usar museus etnográficos para (re)ver, (re)conhecer ou (re)aprender técnicas, objetos em coleções ou registros fotográficos de seus ancestrais. Ao mesmo tempo, os grupos indígenas brasileiros começaram a reivindicar o direito de incluir suas vozes nos processos de tomada de decisão relativos à interpretação de seu próprio passado e ao material gerado por eles ou seus antepassados. Através do contato com artefatos e registros fotográficos, os grupos potencializam a lembrança e o aprendizado das técnicas de manufatura dos objetos.
A “descoberta dos museus pelos índios” acontece ainda na década de 1990 com o Museu Magüta dos índios Ticuna no Amazonas. A organização deste museu se deu em um período crítico, no qual os Ticuna estavam mobilizados em defesa de seu território. Políticos, latifundiários e madeireiros logo perceberam que a organização dos Ticuna e a criação do museu seria uma ameaça aos seus interesses. Entretanto, com muita resistência e apoio de instituições de ensino e pesquisa, o museu e a exposição indígena foi aberta ao público e hoje na cidade onde se localiza é a referência museal da população local.
A iniciativa de alguns grupos indígenas em organizar seus próprios museus demonstra que mesmo um museu etnográfico tradicional, tem o potencial de ser um espaço vivo, de resgate da memória, de afirmação de suas identidades culturais étnicas e do engajamento indígena.
Fazer com que este patrimônio esteja ao alcance destes povos é o compromisso que devemos ter pois este é um importante registro material de objetos feitos pelos seus ancestrais, assim como imagens dos seus antepassados. Compartilhar e também estar atento ao que estes grupos dirão sobre estes registros documentais é um compromisso que retroalimenta a preservação destas memórias e completam a perspectiva antropológica de resgate de memórias com a qual Schultz esteve envolvido.
Referências
BATISTELLA, Aline Maira. Experiências etnográficas de Harald Schultz e Vilma Chiara entre os povos indígenas. Tese (Doutorado em Antropologia) – Universidade Federal de Mato Grosso. Cuiabá, 2017.
CAMARGO, Eliane; VILLAR, Diego (Org). A história dos Caxinauás por eles mesmos. São Paulo, Edições SESC, 2013. p.185.
CAMPOS, Sandra M. C. de L. T. L. Harald Schultz: Fotógrafo e etnógrafo da Amazônia Ameríndia. In: DELGADO VIEIRA, A. C. & CURY, M. X. Culturas indígenas no Brasil e a Coleção Harald Schultz. São Paulo: Edições SESC, 2021.
VICENTIN, Maria Julia Fernandes. Como fazer um filme etnográfico para a Enciclopédia Cinematográfica? As colaborações entre Vilma Chiara e Harald Schultz. P. 173-190. In: DELGADO VIEIRA, A. C. & CURY, M. X. Culturas indígenas no Brasil e a Coleção Harald Schultz. São Paulo: Edições SESC, 2021
VICENTIN, Maria Julia Fernandes. Uma outra história da Antropologia Visual no Brasil: as trajetórias de Vilma Chiara e Harald Schultz. 32ª Reunião Brasileira de Antropologia: 30 de outubro e 06 de novembro de 2020. Disponível em: https://www.32rba.abant.org.br/arquivo/. Acesso em 21 out. 2023.